Filme O Poço

Filme O Poço – Canibalismo e Estado de Necessidade?

Desconfortante e chocante! Luta por sobrevivência, canibalismo e homicídio são algumas das temáticas abordadas no novo suspense da Netflix “O poço”.

*Caso não queira ser pego de surpresa, aviso que esse artigo contém spoilers e descrições de cenas do filme.

O novo suspense espanhol da Netflix descreve uma distopia. Sua história se passa em uma prisão vertical que é dividida em diversos andares, sendo que cada um desses andares possui duas pessoas.

A sistemática desse ambiente hostil gira em torno de uma refeição diária que é oferecida aos prisioneiros por meio de uma plataforma. Todavia, é importante destacar que a comida não alimenta todos os prisioneiros do local, pois a maioria deles passa fome.

A fome desses cativos não decorre da falta de comida e sim do egoísmo dos demais prisioneiros. Pois à medida que as pessoas dos primeiros níveis se farta de comida, as pessoas dos últimos níveis passa fome. É perceptível que quanto mais fundo for o andar, menos comida ou até mesmo nenhuma comida chega lá.

É a partir desse cenário que vislumbramos a luta pela sobrevivência dos personagens que estão nos níveis mais baixos.

Isso fica evidenciado em uma das cenas do filme, na qual o idoso Trimagasi e o seu companheiro de cela Goreng, são enviados do nível 48 para o nível 171. Por esse nível ser bem abaixo já é provável, para ambos, que a comida não vai chegar até lá e eles vão passar fome.

Como uma medida para se evitar esse acontecimento, Trimagasi amarra o companheiro de cela e afirma que após uma semana vai retirar pedaços da sua carne para alimentar os dois.

Após uma semana, estando no seu limite de fome, Trimagasi decide cortar um pedaço do companheiro. Porém, ao iniciar o ato, ele é golpeado por Miharu, uma moça que descia diariamente, através da plataforma de alimentos, a procura de seu filho.

Miharu imediatamente solta Goreng, e Goreng termina por esfaquear até a morte o seu ex-companheiro de cela. Logo após, ele e Miharu, ambos com fome, devoram a carne do falecido.

A partir dessa perspectiva, lanço a seguinte questão: Caso esses personagens fossem julgados por esses atos, eles seriam condenados?

 

Antes de tudo, devemos levar em consideração que a situação na qual os personagens se encontravam era hostil e que se eles não se alimentassem, com certeza morreriam por inanição. Além disso, o psicológico dos presidiários estava desestabilizado, visto que, após todos esses traumas, eles estavam no seu limite. Ou seja, era um caso de vida ou morte.

No Brasil, não existe uma punição especifica para o ato de canibalismo. A lei penal não tipifica nenhuma conduta em relação a comer carne humana.

Porém é claro, que uma pessoa não é livre para matar alguém e posteriormente comer a sua carne. Até porque ela estará cometendo o crime de homicídio (art. 121 do Código Penal) e a depender da situação, o promotor pode estabelecer uma qualificadora (art. 121, § 2º do Código Penal) em razão da violação da carne do defunto.

Também é importante ressaltar que em uma situação hipotética na qual uma pessoa desenterra o corpo de alguém e come os seus restos mortais, vai ser caracterizado um desrespeito ao cadáver, estando essa conduta amoldada ao tipo penal estabelecido no art. 212 do Código Penal: O vilipêndio a cadáver.

Todavia o caso retratado nessa cena do filme é bem mais delicado. O primeiro questionamento é: caso uma pessoa coma a carne de outra dentro de uma situação que põe em risco a sua vida, ela está cometendo um crime? Nesse sentido, Trimagasi ao cortar o companheiro e consumir a sua carne de estava agindo em estado de necessidade? E Goreng? Ele pode ser acobertado pela excludente de ilicitude ao comer a carne de Trimagasi?

Esse acontecimento me lembra do julgamento fictício presente no livro “O Caso dos Exploradores de Caverna”, publicado em 1949. O livro aborda o julgamento de 4 homens acusados por terem matado um de seus companheiros e consumido a carne dele. Deve-se dizer que isso aconteceu quando os cinco homens estavam presos, sem comida e nem água, por mais de 30 dias dentro de uma caverna.

Tendo por base essa comparação, pode-se dizer que a fome era o perigo atual, tanto no livro como no filme. No livro houve um acordo e posteriormente um sorteio para escolher quem morreria e serviria de alimento para os demais, já no filme no primeiro momento Trimagasi decidiu o que iria acontecer.

Antes de Trimagasi lesionar o seu companheiro ele já havia avisado a Goreng que seria daquela forma. Vejamos o art. 24 do Código Penal estabelece que para uma situação ser estabelecida como estado de necessidade, o sujeito deve praticar o fato para se salvar de perigo atual, desde que esse perigo seja provocado por ele e que seja inevitável o sacrifício do outro bem jurídico.

Pode-se atestar a existência de estado de necessidade nessa situação? Veja bem, Trimagasi mutilaria o seu companheiro para extrair parte de sua carne e dividi-la com ele durante todo o período em que eles permanecessem no nível 171.

Devemos levar em consideração também que Goreng em nenhum momento consentiu com a ideia de Trimagasi, ele seria lesionado diariamente, contra a sua vontade (claramente, ele estava em perigo) e a sua carne usada como refeição.

Nota-se que o mais fraco dos dois era Trimagasi devido sua idade mais avançada. Caso Goreng não estivesse amarrado, seria provável que Trimagasi morresse antes. Porém nesse caso não havia o sacrifício de alguém mais fraco, já que Trimagasi poderia morrer mais rápido por inanição.

E Goreng estava em estado de necessidade ao matar Trimagasi e comer a sua carne? Percebe-se que em um primeiro momento, ele agiu em legitima defesa ao se defender de Trimagasi, que ameaçou e violou a sua integridade física. Só após esse ato que ele se alimentou da carne de Trimagasi.

Inicialmente, ao assistirmos essa cena, percebemos que de princípio o personagem age contra sua vontade, ele verifica se realmente ele deve ou não fazer aquilo, entretanto logo Goreng se dar conta de que se não fizer isso ele morrerá.

 

Apesar de o filme “O Poço” se tratar de uma distopia, sendo muito improvável a sua ocorrência na nossa realidade, ele traz diversas questões polêmicas que envolvem tanto aspectos jurídicos como aspectos morais.

Esse filme induz a gente a se questionar sobre comportamentos estabelecidos como certos ou errados. Além de questões como: o “certo” permanece “certo” dentro de situações extremas? Ou então: é “certo” fazer o “errado” mesmo que isso se concentre na violação ou morte de uma pessoa para garantir a nossa sobrevivência?

Poderia existir algum meio termo que figurasse entre o “certo” e o “errado”?

Para finalizar a discursão, trago mais um questionamento: dentro da situação retratada no filme, você faria o mesmo que Goreng?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *